Para quem gosta do teatro total e revolucionário deste gênio francês, aqui iniciaremos uma série de informações a respeito do pensamento de Artaud sobre o teatro e o mundo. Para quem não conhece sua obra, seu pensamento e a sua importância, aqui surge a oportunidade. Boa Leitura!!!
OS TARAUMARAS
A partir de 1936 Artaud passa a narrar sua viagem ao país dos Taraumaras, refazendo essa narrativa até sua morte em 1948, como se fosse um mesmo texto
constantemente reexaminado e acrescido. A série começa com A Montanha dos Signos, escrito ainda no México, e A Dança do Peiote, imediatamente após sua volta a Paris. O último é Tutuguri, escrito em Rodez em 1943, novamente reescrito em 1946 e incorporado a Para acabar com o julgamento de deus, de 1947. O conjunto dos textos, inclusive cartas da época e cartas adicionais escritas durante seu confinamento em Rodez, foram publicados em livro, inicialmente em 1945 e depois, em versão ampliada, em 1947 em revistas e novamente em livro em 1955 (Editions L’Arbaléte), para serem incorporados ao vol. IX da Obra Completa e também editados na coleção Idées (de bolso) em 1971. Os dois primeiros textos da série, escolhidos para a presente coletânea, dão um belo exemplo de narrativa poética de viagem e de antropologia participante, registrando a tentativa de viver outra cultura e não apenas observá-la. Em A Montanha dos Signos vemos novamente um exemplo da semiologia de Artaud: agora não são mais os produtos da cultura que formam um discurso, mas sim a própria natureza. Montanhas, pedras, abismos, tudo é linguagem e tem sentido. A Dança do Peiote é, sem dúvida, a melhor encenação de Teatro da Crueldade de que Artaud chegou a participar, o acontecimento mais próximo da sua noção de como devia ser um espetáculo teatral. Nesse seu relato de viagem, bem como nos seus artigos e palestras do México, e também em textos anteriores, subjaz uma questão fundamental: a do colonialismo e da descolonização cultural. Lembremos que um dos projetos do Teatro da Crueldade era encenar A Conquista do México; só que em vez de encená-la, Artaud foi vivê-la. A intenção, nos dois planos, da obra e da vida, era aliar-se à cultura dos dominados, a uma cultura subterrânea e reprimida, dotada de um elevado potencial subversivo. Trata-se, portanto, do mesmo processo relatado em Heliogábalo, que não era romano mas sírio e que tentou derrubar os deuses, a religião e a ideologia da metrópole, implantando as crenças e signos da sua terra natal, ou seja, de um povo dominado. Em vários níveis, temos sempre o mesmo confronto do dominado contra o dominador: os povos periféricos e colonizados contra a metrópole; o indivíduo contra o poder opressor do Pai, da sociedade patriarcal; o corpo, o lado sombrio da sexualidade, o inconsciente, os instintos, contra o "cogito" cartesiano (que Artaud acertadamente denuncia como produto da Roma imperial); a poesia transformada em realidade contra o discurso racional.
Esse projeto de Artaud é dialético: ele não era um conservador, não estava interessado na restauração de alguma cultura tradicional. Tanto na sua fascinação pelo hinduísmo, pela Cabala, pelas práticas xamânicas, o que o interessa é o confronto com a nossa civilização, o efeito que tudo isso possa ter para alterar nossa percepção e nossa consciência. Os biógrafos de Artaud acham que sua ida ao México foi mais uma derrota, já que ele não conseguiu se livrar da sua dependência do ópio e foi obrigado a voltar à França. Na verdade, ele não podia ter feito outra coisa. Participando de um ritual de iniciação xamânica, o passo seguinte necessariamente seria trazer de volta os resultados
dessa iniciação para a cultura européia, como forma de perturbá-la e questioná-la. Foi o que ele fez, passando a comportar-se como iniciado e profeta e não mais como escritor ou intelectual europeu: carregava o tempo todo seus dois amuletos, a espada com gravações que ganhara de um feiticeiro em Cuba e a bengala entalhada de São Patrício que recebera de um amigo, passando a publicar seus textos seguintes, a primeira edição da Voyage au Pays des Tarahumaras e o cabalístico Les Nouvelles Revelations de L’Etre sob pseudônimo, assim como boa parte da sua correspondência da época, como se ele não fosse mais o autor mas apenas mas o mero porta-voz de mensagens apocalípticas. Loucura ou dramatização das suas idéias? Está aí uma questão que não pode ser colocada, que é falsa sob a ótica artausiana. Pouco importa se o delírio místico de Artaud era a manifestação de um quadro clínico ou uma escolha consciente. Para o próprio Artaud, a diferença entre sintoma e ato consciente é inaceitável, já que ele queria, justamente, abolir e transpor a barreira entre a razão e o inconsciente.
A Montanha dos Signos
O país dos Taraumaras é cheio de signos, formas, efígies naturais que não parecem nascidas do acaso, como se os deuses, cuja presença aqui é notada o tempo todo, quisessem fazer seus poderes significar por meio dessas estranhas assinaturas nas quais a figura do homem é perseguida por todos os meios.
Certo, não faltam lugares nos quais a Natureza, movida por uma espécie de capricho inteligente, esculpiu formas humanas. Mas aqui o caso é diferente, pois foi sobre toda a extensão geográfica de uma raça que a Natureza quis falar.
O mais estranho é como aqueles que passam por aqui, parecendo atacados por uma paralisia inconsciente, fecham seus sentidos e ignoram tudo isso. Que a Natureza, por um estranho capricho, mostre repentinamente o corpo de um homem sendo torturado sobre o rochedo, pode-se achar inicialmente que é um capricho e que semelhante capricho nada significa. Mas quando, após dias e dias a cavalo, o mesmo encantamento inteligente se repete e a Natureza, obstinadamente, manifesta a mesma idéia; quando voltam as mesmas patetices formas; quando cabeças de deuses conhecidos aparecem nos rochedos e delas emana um tema de morte, tema ao qual o homem terá que prestar tributo - e ao vulto desmembrado de um homem respondem outros tornados menos obscuros, mais desprendidos da matéria petrificaste, dos deuses que sempre o torturaram -: quando toda uma região da terra desenvolve uma filosofia paralela à dos homens; quando se sabe que a linguagem de sinais utilizada pelos primeiros homens agora se encontra formidavelmente ampliada sobre os rochedos; então
certamente não se pode achar que se trata apenas de um capricho e que tal capricho nada significa.
Se a maior parte da raça Taraumara é autóctone e se, como eles pretendem, caíram do céu na Sierra, então pode-se afirmar que caíram numa Natureza já preparada. E que esta natureza quis pensar como se fosse humana. Assim como fez evoluírem homens, também fez evoluírem rochedos.
O homem nu e torturado, vi-o pregado num rochedo, as formas acima dele volatilizadas pelo sol; mas, não sei por qual milagre ótico, o homem na parte de baixo permanecia inteiro, mesmo estando sob a mesma luz.
Não saberia dizer quem estava enfeitiçado, se a montanha ou eu, porém milagres óticos análogos, eu os vi durante o périplo pela montanha, aparecendo pelo menos uma vez por dia, todos os dias.
Pode ser que eu tenha nascido com um corpo atormentado, ilusório como a imensa montanha; mas é um corpo cujas obsessões servem para alguma coisa; e percebi, na montanha, para que serve a obsessão de contar. Não houve sombra que eu deixasse de contar ao vê-la dando voltas ao redor de alguma coisa; e multas vezes foi somando sombras que cheguei até estranhos lugares.
Vi, na montanha, um homem nu debruçado numa grande janela. Sua cabeça era apenas um buraco, uma espécie de cavidade circular na qual, conforme a hora, aparecia o sol ou a lua. Seu braço direito estendia-se como uma barra, o esquerdo também era uma barra, mas mergulhado em- sombras e dobrado.
Era possível contar suas costelas, sete de cada lado. No lugar do umbigo brilhava um triângulo luminoso, feito de quê? Não saberia dizer. Como se a natureza tivesse escolhido esta parte da montanha para expor seus minerais enterrados.
Ora, embora a cabeça fosse vazia, o recorte da rocha ao seu redor dava-lhe uma expressão precisa que a luz de cada hora tornava mais sutil.
Esse braço direito estendido para a frente, delimitado por um raio de luz, não indicava uma direção qualquer... E eu procurei o que ele apontava!
Ainda não era meio-dia quando me deparei com a visão; estava a cavalo e avançava rapidamente. Mesmo assim, foi possível perceber que não estava diante de formas esculpidas, mas sim de um jogo determinado de luzes que se acrescentava ao relevo dos rochedos.
A figura era conhecida pelos índios; pareceu-me, pela sua composição, pela sua estrutura, obedecer ao mesmo princípio ao qual toda essa montanha truncada obedecia. Na linha do seu braço havia um povoado rodeado por uma cintura de rochedos.
E vi que todos os rochedos tinham a forma de um peito feminino com os seios perfeitamente desenhados.
Vi repetir-se oito vezes o mesmo rochedo que dirigia duas sombras para o chão; vi duas vezes a mesma cabeça de animal carregando nas presas sua efígie e devorando-a; vi, dominando o povoado, uma espécie de enorme dente fálico
com três pedras no cume e quatro buracos na face externa; e vi, desde o começo, todas essas formas passarem aos poucos para a realidade.
Tinha a impressão de ler em todo lugar uma história de parto na guerra, uma história de gênese e caos, com todos esses corpos de deuses talhados como homens e essas estátuas humanas truncadas. Nenhuma forma intacta, nenhum corpo que não parecesse saído de um massacre recente, nenhum grupo onde eu não lesse o combate que o dividia.
Descobri homens afogados, semidevorados pela pedra e, nos rochedos de cima, outros homens que lutavam para afundá-los.
Na Cabala existe uma música dos números e esta música, que reduz o caos material a seus princípios, explica, por uma espécie de matemática grandiosa, como a natureza se organiza e dirige o nascimento das formas retiradas ao caos. E tudo que eu via parecia obedecer a uma cifra. As estátuas, as formas, as sombras sempre davam um número 3, 4, 7, 8 que voltava. Os bustos de mulheres truncadas eram em número de 8; o dente fálico, já disse, tinha três pedras e quatro furos; as formas volatilizadas eram 12, etc. Repito: podem dizer que essas formas são naturais; mas sua repetição, esta não e natural. Menos natural ainda é como essas formas da sua terra são repetidas pelos Taraumaras nos seus ritos e danças. E tais danças não nascem do acaso, mas obedecem à mesma matemática secreta, à mesma preocupação com o jogo sutil dos números ao qual obedece a Sierra toda.
Ora, essa Sierra habitada e que exala um pensamento metafísico, os Taraumaras a semearam de signos, signos perfeitamente conscientes, inteligentes e determinados.
Em todas as curvas do caminho, vê-se árvores voluntariamente queimadas em forma de cruz ou de seres e, freqüentemente, tais seres são duplos e estão frente à frente, como para manifestar a dualidade essencial das coisas; e essa dualidade, a vi reduzida a seu princípio por um signo em forma de encerrado num círculo que me pareceu marcado a ferro em brasa sobre um grande pinheiro,, outras árvores carregavam lanças, trevos, folhas de acanto rodeadas de cruzes; aqui e ali, em lugares estreitos, apertados corredores de rocha nos quais linhas de cruzes egípcias com braçadeiras desdobravam-se em teorias; e as portas das casas taraumaras exibiam o signo do mundo dos Maias: dois triângulos opostos com as pontas ligadas por uma barra; e essa barra é a Árvore da Vida que passa pelo centro da Realidade.
Assim, caminhando através da montanha, essas lanças, cruzes, trevos, corações folhudos, cruzes com postas, triângulos, seres que se defrontam e que se opõem para assinalar a guerra eterna, sua divisão, sua dualidade, despertam em mim estranhas lembranças. Lembro-me imediatamente que houve, na História, seitas que incrustaram esses mesmos signos nos rochedos; cujos homens usavam esses signos, esculpidos em jade, batidos no ferro ou cinzelados. E ponho-me pensar que esse simbolismo dissimula uma Ciência. (Amanhã postaremos a continuidade)
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